Era azul o artifício que reluzia atrás de você naquela noite em que a vi, sorrindo, na sacada. O álcool no meu sangue não me deixava entender direito a imagem. O brilho vinha de seu sorriso ou dos fogos? Um pouco tonta, deixei-me cair no sofá da sala e assistir a sua dança por entre a vidraça.
Pensei que dali a uns anos seria você a sentar-se no sofá para assistir à dança dos mais jovens. Talvez nessa mesma casa, talvez também num réveillon fora de época. Sim, réveillon porque a comemoração de aniversário é o réveillon pessoal de alguém.
Era o seu ali. Seus vinte e três anos, a flor da juventude representada na estampa de seu vestido.
Eram azuis as flores borradas na saia do vestido. Como pinceladas de um artista impressionista, de longe formavam uma imagem agradável, suave. Comentei com um homem que também assistia à cena que me sentia um tanto tonta e um tanto velha ao ver vocês ali, naquela dança despretensiosa como se nada mais importasse, como se não houvesse boletos e visitas a médicos, ressonâncias magnéticas e a necessidade de comer ao menos três refeições por dia.
Ardiam-me as têmporas com o prenúncio da enxaqueca. Ajeitei-me na almofada daquele sofá que tinha sido de nossa avó e continuei a ver a dança na sacada. Até que adormeci.
Eu não sabia, mas aquele homem a meu lado a conhecia bem mais do que eu supunha. Não eram apenas colegas de trabalho, como você disse ao nos apresentar. Era seu amante. Um homem que devia ter aproximadamente vinte anos a mais que você. Talvez um pouco mais. Lembro-me de ter pensado que aquele ar jovial já não combinava com a expressão cansada que os olhos atrás das lentes carregavam.
Quanto tempo durou esse romance? Três anos, você me respondeu quando, aflita, pediu para ficar uns dias em minha casa porque haviam rompido e, agora, ele a perseguia. Ele não sabe onde você mora, talvez aqui eu tenha um pouco de paz. Ainda escuto sua voz apavorada, vejo o medo exalando de todo o seu corpo. Lembro-me de sentir seu suor quando a abracei.
Sugeri que contasse a nossos pais, mas você temia uma represália. Sugeri que fizesse um boletim de ocorrência e seu riso debochado me denunciou que havia ali muito mais do que minha compreensão alcançava.
Foram dias correndo a seu quarto para livrá-la do terror noturno. Noites insones em que tentávamos não mencionar o nome do homem que a fazia assim. Com o passar do tempo, você me contava histórias cortadas que começavam a compor o quebra-cabeça de uma vida sua que parecia ser totalmente alheia à nossa.
Ele era de fato seu colega de trabalho. Era casado, pai de duas crianças. Você conhecia a esposa. Contive meu horror para que você não se sentisse mal, mas juro, Coralina, juro que não me conformava com nada daquilo. Você narrava suas aventuras sexuais e dores ciente de meu posicionamento acerca de tudo e confessava pelo olhar que também não concordava com as ações que praticara, sentia vergonha e não podia disfarçar. Eu, atônita, ouvia e lhe estendia os braços quando não havia mais o que dizer.
Foi quando você fez novo aniversário, quatro anos após aquele na sacada. Voltei do trabalho eufórica para lhe dar o livro que acabara de comprar, aquele de poesias que você queria, e a vi ali, corpo estirado na sala. Morta, Coralina, você estava morta.
Não lembro muito o que aconteceu naquele dia depois que a encontrei. Entrei em choque, disseram os médicos. O laudo dizia que você tinha sido morta, afastando o possível suicídio.
Demorei para me recompor, foram anos tentando assimilar sua morte, seu assassinato. Quem poderia ter feito tamanha crueldade? Eu sabia, você também.
Estou cansada, Coralina, mais cansada do que de costume. Cansada de lutar, cansada de respirar. Exausta, pra ser sincera.
E ainda hoje vi o rosto de seu assassino figurando o noticiário. Ele ganhou um prêmio por seu trabalho. Um prêmio, Coralina.
Toda a raiva do mundo reverbera agora em mim.
Preciso do silêncio.